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Os primeiros dias – as decisões a serem tomadas e os lastros que abandonamos

  • Foto do escritor: arthur azevedo
    arthur azevedo
  • 18 de jul.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 4 de ago.

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Com dizem os americanos: “this was not my first rodeo”, mais precisamente, não era meu primeiro deserto. No primeiro dia, achávamos que éramos invencíveis, mas o deserto dá um jeito de mostrar que a última palavra é dele. As manhãs e as noites eram sempre muito frias, mas quando o sol nascia, o bicho pegava. O calor é muito duro e, em nosso caso, chegou a 55 graus centígrados. Ali, o filho chora, e a mãe não vê! Era é a hora de ser conservador. Sim, o seu corpo está ótimo, sua mente se sente vencedora e você até sente que pode atingir uma colocação decente. Mas era só o primeiro dia. Ainda havia cinco pela frente para fechar os 250 km. Como se diz em Minas: “devagar com o andor, que o santo é de barro”!


O primeiro dia passamos pela praia e, depois, por uma mina de sal, onde os lagos tinham uma coloração rosada que eu nunca tinha visto. Larguei “montado” – casaco de pena de ganso, jaqueta corta vento e tudo. Estava morrendo de frio. À medida que o sol aparecia, era a hora de tirar tudo e socar na mochila. Fiquei no fundão, ajudando uma participante a ajustar a mochila e os diversos penduricalhos conectados a ela. Ela largou com 16 kg de mochila, sem água. Todos estávamos preocupados, mas confesso que nunca vi tanta força de vontade e determinação numa pessoa. Ela foi fantástica, muito forte!


À medida que jornada evoluía e os dias passavam, o deserto mostrava sua cara, a realidade começava a se transformar na sua frente. Amigos começavam a ficar pelo caminho. Alguns com bolhas terríveis nos pés, desidratação ou mesmo com lesões musculares. Gente com ritmo mais forte que o meu foi ficando nos pontos de controle ou mesmo recolhido pela pick-up que nos monitorava o tempo todo.


Aprendi uma coisa: parar de pensar na corrida toda ou mesmo no dia à minha frente. Fazer 40 km naquele dia, naquele calor, com aquela elevação ou aquele terreno, era impossível. Fazer 250 km então, nem pensar. Mas 10 km até o próximo ponto de controle, isso eu poderia fazer. E assim foi, meu objetivo passou a ser não mais a corrida, mas chegar ao próximo ponto de controle. Lá, eu tirava a mochila, tirava meus tênis, limpava a areia que se acumulava nos meus pés, comia alguma coisa e enchia minhas garrafas de água. Aí eu estava em condições de reavaliar: “dá para chegar no próximo, mais 10 km. Sim, dá! Então, vamos”! Durante o trajeto: água, eletrolíticos, tabletes de sal, uma paradinha aqui e ali para tirar uma foto, curtir a vista. E este foi o jogo: uma vasta sequência de pequenas corridas de 10 km. Passo a passo!


Mas a mochila pesava, a carga começava a cobrar o seu preço nos ombros e na cintura. Como na vida, carregamos o que não precisamos: emoções, rancores, tensões, preocupações, expectativas que não nos ajudam em nada. Só pesam. Pois é, minha mochila tinha mais comida do que eu precisava, um carregador solar sem cabo de conexão (esqueci no hotel), roupas de que não precisaria, frascos de comprimidos e tabletes que poderiam ser dispensados se eu colocasse tudo em um dos vários zip lock que eu tinha de sobra. Na noite do segundo dia, foi o momento do desapego. E pensei: “é agora! Cada coisa que ficar tem que ter uma utilidade. Se não tiver, está fora, será doada. Não importa o preço no mundo exterior. Aqui, o valor é o valor da utilidade, não do preço histórico”. Um bom conceito, que vale até na contabilidade moderna.


No segundo dia, encontrei uma participante em dificuldades. Parei, fiquei com ela. Achamos uma sombra, comemos, bebemos e nos recuperamos. Ela me agradeceu por estar com ela, já às lágrimas. Contei que, em 2018, uma Canadense havia feito isso por mim, na Travessia do Atacama, e salvou a minha corrida, pois eu estava decidido a desistir. Ela nunca saiu da minha memória. Eu estava feliz de poder ajudar, e isso me deu mais energia do que qualquer coisa que pudesse ingerir. Naquele momento, vivia o meu propósito, a minha raison d’être, igual ao Sir George Mallory.


Fui o último a chegar naquele dia, até um “pouquinho” depois do horário de corte. Os organizadores avaliaram, foram flexíveis e me deixaram continuar na prova. Afinal, eu não competia com ninguém a não ser comigo mesmo e com o Deserto, agora com D maiúsculo.


Fui recebido à noite, junto com os sweepers, que recolhem todos os traços que evidenciam que passamos por lá, com muita celebração. Todos estavam genuinamente felizes que eu estava lá e havia completado o dia. Uma sensação impagável.


De repente, veio o pensamento: “e amanhã”? Lembrei-me de Scarlet O’Hara, de E o Vento Levou: “Não consigo pensar nisso agora. Vou enlouquecer se o fizer. Amanhã eu penso nisso”!


Até a próxima semana! Abraços!

 
 
 

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